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Trajetória de discente de Direito revela como o Brasil ainda não superou heranças da escravidão e a urgência de políticas de promoção da igualdade a estudantes quilombolas

  • Publicado: Quinta, 13 de Mai de 2021, 12h38
  • Última atualização em Quinta, 13 de Mai de 2021, 15h04
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PM 7O Dia 13 de maio é a data em que, formalmente, a escravidão foi abolida no Brasil. Mas, a Lei Áurea, identificada por muitos como o ponto crucial que pôs fim ao regime escravista, não foi um ato libertário por parte da princesa Izabel. Na verdade, a abolição foi fruto de inúmeros processos sociais, que envolvem desde a pressão pela criação de mercados consumidores até a luta das pessoas escravizadas por liberdade e melhores condições de vida.

Depois de mais de três séculos erguido sobre a dor e a força dos escravizados, o Brasil, de fato, não oportunizou a essas pessoas e a seus descendentes iguais condições de vida. Os agora ex-escravizados passaram a ocupar as margens da sociedade brasileira, que os excluiu moral e economicamente da construção da nação.

Essas margens configuraram o que conhecemos hoje como as periferias das grandes cidades. Favelas, aglomerados, ocupações e outras denominações fazem referência espacial ao lugar que a sociedade brasileira relegou os descendentes dos escravizados no passado colonial e imperial. E a construção de territórios de resistência, como as comunidades remanescentes de quilombos, estão ameaçadas por latifundiários, madeireiras, mineradoras, grandes obras de infraestrutura e até pelo próprio Estado.

O racismo estrutural, prática materializada em inúmeros atos de violência policial, na identificação de corpos negros e indígenas como suspeitos, que colocam as mulheres negras na base da pirâmide econômica nacional na atualidade, entre tantos outros exemplos, é o legado moral da escravidão.

A Constituição de 1988, promulgada 100 anos após a Lei Áurea, é, por outro lado, o grande marco das lutas dos descendentes de escravizados e de outros grupos sociais por reconhecimento e direitos. Titulação territorial e acesso a educação de qualidade são duas das principais conquistas dos movimentos negros, que seguem, até hoje, em busca da superação das desigualdades e do racismo.

Nesse contexto, políticas de reserva de vagas a grupos negros e quilombolas em universidades públicas emergiram a partir de articulações entre instituições e movimentos de todo o país. É o caso também da política de reserva de vagas para quilombolas na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) e da política de fortalecimento e assistência estudantil a esses grupos, sustentadas por iniciativas como auxílios e setores específicos que atuam no percurso acadêmico de discentes na universidade.

O 13 de maio parece ser, então, uma data simbólica para falar sobre o percurso de conquistas e lutas. Para contar um pouco sobre como essa história pode ser vista a partir de uma realidade concreta, apresentamos aqui uma entrevista que a Assessoria de Comunicação (Ascom) da Unifesspa fez com com Paula Menezes.

Com o Trabalho de Conclusão de Curso defendido em uma banca online histórica, no dia 23 de abril de 2021, Paula conquistou o título de Bacharel em Direito pela Unifesspa. Agora, recém-graduada, a quilombola da comunidade de Umarizal, município de Baião, a cerca de 380 km de Marabá, fala sobre como conheceu a oportunidade de estudar em uma universidade pública, sua missão a partir da formação e o desejo de fortalecer as lutas da sua e de outras comunidades.

PM 13Ascom: Fale um pouco da sua história. De onde você vem, quando ingressou na universidade, a escolha do curso e o porquê dessa escolha. Como foi essa história?

Paula Menezes: eu me chamo Paula Menezes, sou quilombola do território de Umarizal, localizado no município de Baião, no Estado do Pará.

Ingressei na Unifesspa em 2016, após uma ação da Proex no meu quilombo em 2015, onde levaram informações e apresentaram o processo seletivo na comunidade. Estou me formando no curso de Direito e em primeiro momento eu não me via nesse curso, visto que, achava muito diferente da realidade que eu tinha, acreditava que para pessoas como eu, que vêm do interior, uma licenciatura na área da educação era o suficiente.

Entretanto, na ação desenvolvida pela Proex, em 2015, na minha comunidade, a pedagoga que atua na Proex, Paula Fernandes, me chamou para uma conversa na beira do rio e colocou a situação de o por que eu não fazia o curso de Direito no processo seletivo, visto que minha comunidade é rica em várias dimensões, porém, até aquele momento, não conhecia os direitos que tem.

Ela acreditava que eu poderia fazer o melhor para ver o território quilombola de Umarizal bem desenvolvido, se eu me formasse e não esquecesse de onde estava saindo. E assim foi feito, me inscrevi no PSE2016 em Direito, nessa perspectiva de ajudar a minha comunidade.

Ascom: Conte um pouco sobre o Processo Seletivo Quilombola.

PM: O processo seletivo que eu fiz não foi nada fácil. Não é fácil para uma pessoa que vem de uma comunidade tradicional e não tem acesso a tantas informações preparatórias. Logo de início veio a tensão porque não tinha a folha de redação com meu nome, "rsrs", mas logo o Edson dos Anjos resolveu e então eu fiz a prova.

O tema foi muito ligado à minha realidade. Era para falar sobre mim e minha realidade na comunidade, falar do curso escolhido e como eu iria utilizar essa formação dentro da comunidade, até hoje a minha perspectiva de candidata a uma vaga em uma universidade pública não mudou, eu vou promover a advocacia popular no quilombo, serei uma advogada popular quilombola.

A entrevista foi muito mais tranquila, tive que falar da minha vida e da minha realidade, creio que minha entrevista foi uma das mais demoradas daquele PSE "rsrs". Mas no fim, a aprovação veio e a filha de uma pensionista, mãe solteira, estava entrando na Federal do Sul e Sudeste do Pará.

Ascom: E após a aprovação, como foi sua vida na Unifesspa?

PM: De início, as dificuldades iniciaram com a questão financeira, não foi fácil sair da minha realidade para morar em uma cidade grande sem nenhuma perspectiva financeira. Minha mãe não pôde me ajudar naquele primeiro momento, devido problemas financeiros no banco. O que me auxiliou no primeiro momento foi o programa bolsa família do Governo Federal, o qual me pagava 140 reais pelas duas filhas que eu tenho.PM 3

De início, tentei morar com uma amiga, Letícia Batista, a qual agradeço até hoje pela ajuda que me deu. Mas a casa ficava longe da universidade, então tive que vir morar para perto. Foi então que uma moça do quilombo Nova Jutaí, localizado em Breu Branco, me ofereceu uma vaga na kitnet onde ele estava morando, que ficava atrás da Unifesspa.

E assim eu fui morar com cinco pessoas, quatro da comunidade de Nova Jutaí e uma da minha comunidade. Passamos maus bocados em uma kitnet de apenas um quarto, uma sala pequena e uma cozinha com banheiro. Morar com muitas pessoas nunca é fácil, mas ali fazíamos de tudo para ajudar todo mundo.

Eu sempre tirava o horário da madrugada para estudar, visto que era o horário mais tranquilo para se concentrar e todos estavam dormindo. Mas viver em uma casa pequena, com muitas pessoas, tendo um estudo puxado, não era fácil, foi quando eu recebi a proposta para estagiar na Proex.

Logo nos primeiros dias de aula, não tinha nem uma semana estudando, e eu agarrei a oportunidade e fui ter meu primeiro contato com uma estagiária dentro da universidade. A Proex para mim foi minha casa. No dia 01 de junho de 2016, quando iniciei meu estágio, conheci pessoas maravilhosas, que me receberam com muito carinho: Michele, Elino, Augusto Severo, Ronaldo, conheci melhor a Paula Fernandes e Sheila Kaline e foram as pessoas que mais me deram a mão na instituição e eu agradeço até hoje por tudo que me ensinaram.

Pronto, nesse momento, a questão financeira estaria resolvida, ou parte dela. Mas os problemas acadêmicos só começaram, eu não tinha equipamento tecnológico para estudar, nem celular e nem computador, eu me organizava para estudar na biblioteca depois do estágio. Às vezes, só saia do estágio e ficava na biblioteca, sem comer nada, só bebendo água, para poder concluir as tarefas passadas e pesquisar sobre o que eu não sabia.

Até hoje tenho isso comigo: o que eu não sei, busco aprender com a Internet. Minha maior dificuldade foi com a norma da ABNT. Que coisa complicada! Arrancou várias lágrimas no decorrer desses cinco anos "rsrs".

Passado um tempo, eu comecei a me adaptar à realidade da vida acadêmica e com nota acima da média, eu consegui concluir a carga horária do curso com êxito.

Ascom: então, imagino que o Trabalho de Coclusão de Curso não foi fácil, ainda mais, no contexto da pandemia, não é?!

PM 11PM: Não foi fácil o último ano da faculdade, a pandemia dificultou bastante toda a questão de pesquisa para o TCC, e estar longe da sala de aula e dos amigos que construir ao longo dos anos e da minha família não foi uma tarefa fácil. Mas eu consegui concluir a graduação no curso Direito.

Ascom: Quais experiências, além da sala de aula, você teve? Participou de projetos de ensino, pesquisa ou extensão?

PM: participei de várias ações dentro da Unifesspa: fui bolsista do programa de acolhimento estudantil na DAIE/PROEX (2016), logo após, eu fui selecionada como monitora no programa monitoria para discentes quilombolas, promovido pela PROEG [Pró-Reitoria de Ensino de Graduação], por meio da Diretoria de Planejamento e Projetos Educacionais, Dproj (2017).

Em seguida, fui apoiadora no Programa de Apoio aos Estudantes Quilombolas – PEQUI, promovido pela Diretoria de Planejamento e Projetos Educacionais – DPROJ (2018), planejei o Curso de Informática Básica Normas da ABNT e Ferramentas Do Sig-Unifesspa para Discentes Indígenas e Quilombolas, o qual foi desenvolvido por técnicos, professores e por alguns departamentos (2018).

Fui presidente do Centro Acadêmico Direito, CADGSP (2018), participei da comissão eleitoral para nova gestão do Diretório Central Estudantil – DCEJR (2019), ajudei a construir o I Simpósio Mulheres na Ciência (2019), participei do Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão – CONSEPE (2017 – 2021), participei da Câmara de Ensino e graduação (2017 e 2021), e da Câmara de Extensão (2018)

Também fui presidente e membra fundadora da Associação dos Estudantes Indígenas e Quilombolas da Unifesspa – ADIQUI/UNIFESSPA (2017 – 2019), e representante dos estudantes Quilombolas – ADESQUI/UNIFESSPA (2019-2020), e do Centro Acadêmico dos Estudantes Quilombolas Zumbi e Dandara Palmares – CAEQ – ZUMBI/DANDARA PALMARES (2020-2021).

Ascom: realmente, uma trajetória muito produtiva. Parabéns! Agora, fale um pouco sobre seu tcc: qual o tema, quais os objetivo, por que escolheu falar sobre isso?

PM: o meu objeto de pesquisa para o TCC foi o Procedimento Administrativo e Judicial para reconhecimento da propriedade dos remanescentes de quilombo sobre suas terras, com o título: Titulação de Territórios Quilombolas no Baixo Tocantins: Uma Análise Processual na Demarcação e Titulação do território Quilombola de Umarizal, Baião/PA, sob orientação da professora Maria Clara Sales Carneiro Sampaio, da Faculdade de História.

Com o objetivos me propus a delimitar um conceito para o procedimento administrativo na demarcação do território quilombola e examinar se o poder administrativo é compatível com o estado democrático de direito instituído pela Constituição Federal de 1988.

De modo específico, busquei conceituar o Ato administrativo na demarcação do território quilombola; analisar a compatibilidade desse Ato administrativo com a democracia que fundamenta todo o Estado Democrático de Direito; analisar a aplicação do art. 68 da ADCT pelas cortes brasileiras; realizar um panorama constitucional sobre quem tem direito ou não na consumação desse direito; e comparar a legitimidade democrática das decisões já proferidas com outros processos em andamento.PM 8

Escolhi falar sobre essa temática por ser quilombola no curso de Direito e ter a oportunidade de falar do meu próprio território não tem preço. Busquei saber a título de curiosidade o por que que meu território não tina título. Ao todo, foram mais de 7.000 mil páginas analisadas de um caso real, tendo esse recebido o conceito Excelente e considerado por um dos avaliadores como “um marco histórico na história da Unifesspa” (fala do professor Jorge Luiz).

Ascom: E o que você tem planejado para o futuro?

PM: Hoje, eu já presto serviço para a associação do meu território na questão jurídica, trabalho em um escritório de advocacia na cidade de Baião que presta serviço Pro Bono para a Associação e o meu futuro em pequena escala é realizar o que eu declarei na mina entrevista de ingresso na Universidade: ser uma advogada popular quilombola, que entrou na faculdade de Direito, não apenas pelo dinheiro, mas sim pelo bem social das comunidades quilombolas.

O futuro a longa escala, pretendo passar no concurso para promotora de Justiça do Ministério Púbico e posteriormente ser Magistrada.

Ascom: Na sua avaliação, como é a participação dos quilombolas nas universidades? Ainda é pequena? Quais os principais entraves? Por que é tão importante essas pessoas ocuparem o ambiente universitário? O que precisa melhorar?

PM 2PM: Na minha concepção, a participação dos estudantes Quilombolas nas universidades ainda é pequena. Podemos conquistar cada vez mais o nosso espaço. Porém, os principais entraves são em sua maioria entendidos como racismo institucional.

Ainda hoje, muitos estudantes ainda têm medo de sofrer preconceito e serem excluídos nas Universidades. Eu fui discriminada por professores dentro da instituição, não no meu curso, mas nos outros cursos, fui exposta por colegas, motivo de piadinhas internas, mas eu consegui superar, aquilo não me abateu, porque o que os meus colegas não tinham era informação da minha realidade, de como eu vivia e qual era meu grau de ensino, e quando eles conheceram, tudo começou a mudar e eu consegui concluir o curso com o índice acima de oito.

Ascom: E nos outros campos da sociedade sociedade, como uma pessoa quilombola é vista?

PM: dependendo de onde seja, é vista como pessoa que tem muitos benefícios. Há quem usa dessa qualificação para se beneficiar. Mas, a realidade é totalmente diferente, nem território para chamar de nosso nós temos. Não temos acesso aos nossos direitos se não tivermos uma pessoa qualificada para ir buscar, isso as pessoas da sociedade civil não entendem.

Estranham nossas crenças e costumes, achando que é coisa de outro mundo, quando na verdade só somos nós continuando o que nossos antepassados deixaram, as lutas, crenças e culturas. Lutar sempre, desistir jamais! A verdadeira Luta só está começando com a conclusão da graduação em Direito.

 

*Imagens: acervo pessoal.

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